A ciência canábica avança a passos largos. Uma análise bibliométrica da literatura científica sobre cannabis (Ng & Chang, 2022) fala em 29.802 artigos publicados periódicos revisados por pares (peer-reviwed journals) entre 1829 e 2021 (abril). O volume foi mais expressivo nos últimos 20 anos, com destaque para Estados Unidos, Canadá e Reino Unido. Entre 2010 e 2020 foram publicados 8420 artigos na área de medicina. Outras fontes que consideram mais bases de dados trazem números ainda maiores. E a tendência é de aumento cada vez mais expressivo. Uma pesquisa rápida na base de dados PubMed utilizando a palavra "canabinoide" indica que foram publicados 347 apenas este ano (estamos em março). O que mudou? O acesso. Com mais países legalizando/regulamentando o uso de cannabis, fica mais viável aprovar projetos de pesquisa na área e adquirir insumos adequados.
Até pouquíssimo tempo atrás, praticamente toda a matéria prima utilizada nas pesquisas feitas nos EUA, o país que mais pesquisa cannabis, vinha de uma única fonte, o NIDA (National Institute on Drug Abuse). A qualidade dos insumos era sabidamente baixa e muito discrepante (menos potente) da realidade do que estava sendo consumido (tanto no uso adulto, quanto medicinal). É admirável que tantos estudos tenham ainda assim encontrado efeitos importantes. No Brasil, muitos projetos de pesquisa tiveram que ser adiados e até abandonados porque os insumos ficaram retidos pela polícia ou foram até mesmo destruídos. Mas ciência também é resistência e foi-se avançando, às vezes mais lentamente, mas sempre em frente.
Temos lacunas?
Claro que sim! Muitas. Desconheço qualquer área de conhecimento que seja considerada completa. Lacunas são oportunidades. A planta possui mais de 500 compostos e nós ainda estamos trabalhando com apenas 4 ou 5 canabinoides. Novos componentes do sistema endocanabinoide seguem sendo descobertos no nosso corpo. Entretanto, não estamos mais apenas engatinhando. A ciência canábica em suas pesquisas já possui bases sólidas e indicações clínicas claras. Existem medicamentos nas farmácias do norte global há décadas. O Marinol (ou dronabinol, um produto de THC sintético) chegou às farmácias estadunidenses em 1985 para tratamento de anorexia/ inapetência em pacientes com HIV-AIDS e náuseas causadas pela quimioterapia. O Mevatyl (CBD:THC) chegou nas farmácias brasileiras em 2017 para tratamento de espasticidade em esclerose múltipla e o Epidiolex (CBD isolado) chegou em 2018 com indicação para epilepsia resistente nas síndromes de Lennox-Gastaut e Dravet.
Pesquisa e aplicação
A lacuna de tempo entre a pesquisa básica e a aplicação na prática clínica é estimada em aproximadamente 20 anos (com muitas nuances e diferenças entre especialidades). Isso faz parte o processo de consolidação do conhecimento e do estabelecimento de parâmetros seguros. Para algumas patologias, já estamos prontos. Mas como esperar que médicos que sequer estudam o sistema endocanabioide (descrito na década de 1990) na faculdade saibam ou queiram prescrever cannabis? Acho muito relevante pontuar que alguns dos livros didáticos falam sim dos receptores canabinoides, da ciência canábica, mas essa parte não é ensinada em sala de aula.
Enquanto isso, a cannabis é colocada sob um escrutínio que nenhum outro medicamento enfrenta. Por quê? Preconceito e seu primo-irmão: o medo. Mas enquanto pesquisadores se viram para driblar imposições surreais, pacientes sofrem. Tem sua qualidade de vida reduzida, morrem sentindo uma dor desnecessária. Morrem.
E como fica a prescrição?
Quer dizer que os médicos devem sair prescrevendo cannabis sem base científica? Claro que não. Mas podem e devem olhar para o contexto. Podem e devem se atualizar. Em primeiro lugar, já temos base científica para ir muito além das indicações de bula citadas anteriormente. A plataforma Cannakeys (uma base de dados de estudos científicos sobre o sistema endocanabinoide) traz uma lista de mais de 100 patologias que já possuem alguma pesquisa no contexto do SEC. Dor crônica, insônia e ansiedade são três condições absurdamente comuns que costumam responder mal aos tratamentos convencionais (seja pela ineficiência ou pelos efeitos adversos) para as quais já temos boas evidências que a cannabis ajuda. Por que não lançar mão dessa opção terapêutica? A cannabis é muito segura , especialmente se considerarmos os produtos ricos em canabidiol, então, o que está faltando?
Além de tudo que já sabemos (redução do encarceramento de pessoas pretas e pobres, diminuição da violência e mortes evitáveis, mais segurança para pacientes e usuários, ganhos econômicos, etc) o que mais será que acontece se legalizarmos a maconha?
A ciência avança. E com ela vem uma cascata de mudanças positivas na vida das pessoas e do planeta.
> Por Letícia Dadalt - Bióloga, doutora em Ecologia
Referências:
- Ng JY, Chang N. A bibliometric analysis of the cannabis and cannabinoid research literature. J Cannabis Res. 2022 May 25;4(1):25. doi: 10.1186/s42238-022-00133-0. PMID: 35610633; PMCID: PMC9131698.
- Di Marzo, V., Bifulco, M. and De Petrocellis, L. (2004) ‘The endocannabinoid system and its therapeutic exploitation’, Nature Reviews Drug Discovery, 3(9), pp. 771–784. doi: 10.1038/nrd1495.
- Finn, D. P. et al. (2021) ‘Cannabinoids, the endocannabinoid system, and pain: a review of preclinical studies’, Pain, 162(7), pp. S5–S25. doi: 10.1097/j.pain.0000000000002268.
- Souza JDS, Zuardi AW, Guimarães FS, Osório FL, Loureiro SR, Campos AC, Hallak JEC, Dos Santos RG, Machado Silveira IL, Pereira-Lima K, Pacheco JC, Ushirohira JM, Ferreira RR, Costa KCM, Scomparin DS, Scarante FF, Pires-Dos-Santos I, Mechoulam R, Kapczinski F, Fonseca BAL, Esposito DLA, Andraus MH, Crippa JAS. Maintained anxiolytic effects of cannabidiol after treatment discontinuation in healthcare workers during the COVID-19 pandemic. Front Pharmacol. 2022 Oct 3;13:856846. doi: 10.3389/fphar.2022.856846. PMID: 36263136; PMCID: PMC9574068.
- Bonn-Miller MO, Feldner MT, Bynion TM, Eglit GML, Brunstetter M, Kalaba M, Zvorsky I, Peters EN, Hennesy M. A double-blind, randomized, placebo-controlled study of the safety and effects of CBN with and without CBD on sleep quality. Exp Clin Psychopharmacol. 2023 Oct 5. doi: 10.1037/pha0000682. Epub ahead of print. PMID: 37796540.
- Ribeiro, Sidarta. As Flores do Bem: A Ciência e a História da Libertação da Maconha. Editora Fósforo, 2020.
- https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/
- https://cannakeys.com/
- https://www.nih.gov/about-nih/what-we-do/nih-almanac/national-institute-drug-abuse-nida