No texto de estréia dessa coluna, “Então, cannabis não é maconha?”, refleti muito sobre a etimologia das palavras, e como a sociedade tenta usar da semântica para esconder fatos e responsabilidades. Nele concluo que:
Maconha é cannabis, é cânhamo, é liamba. É remédio sim, é um fitoterápico muito seguro, é uma planta que poderia e deveria ser cultivada por todos que precisam. Não faz mais sentido tentar dissociar cannabis de maconha, não faz mais sentido discutir se é medicinal ou não, como não faz mais sentido ter que explicar que a terra não é plana.
As únicas discussões válidas agora são a maconha como primeira opção de tratamento, o acesso democrático a remédios e uma política de Saúde Pública que priorize os princípios constitucionais da vida e saúde e a necessária reparação histórica às vítimas da fracassada guerra às drogas.”
Segregação, dominação, seja por violência ou por opressão econômica, são uma constante na história da humanidade. Civilizações, impérios e nações foram construídos pelas mãos de escravizados, desde gregos, romanos, egípcios até incas, e nações europeias se fizeram usando a violência como meio de dominação e da supressão identitária de povos escravizados.
Interessante analisar que a palavra “escravo”, derivada do latim “slavus”, fazia referência aos povos eslavos, da região dos Balcãs, às margens do mar negro. O que mostra que nem sempre esteve associado a uma raça ou cor de pele específica, mas sempre teve um forte cunho racista. Digo isso pois os eslavos eram assediados pelo Islã, enviados à península ibérica ou ao Oriente Médio e descritos como inferiores pelos seus captores. De fato, por volta de 1500 os escravizados no mundo eram predominantemente brancos.
Essa situação começou a mudar por volta do século XVII, com o assédio europeu ao continente africano, cujas consequências sentimos até hoje na sociedade brasileira.
Uma das primeiras ações do escravagista era a obliteração da identidade do escravizado, que tinha suas roupas, adornos e objetos tomados, qualquer traço de identificação de tribo ou povo era removido, os cabelos eram raspados. Tinham seus corpos marcados a fogo e recebiam um novo nome.
Por isso tudo me causa estarrecimento ler versões romantizadas e pouco verossímeis de que os povos escravizados trouxeram a maconha em sementes, em barras de saias, bonecas e tranças. Esquecemos convenientemente que o cânhamo já era uma importante matéria prima para as velas e cordas dos navios que transportavam os cativos.
Vejo que o tempo passou e ainda assim longe da lógica escravista mudar, ela apenas se modernizou. Passou a proibir o samba, o candomblé, a capoeira, a atribuir falsamente ao povo negro uma indolência, maldade e inferioridade. E isso o manteve à margem mesmo após a (discutível) abolição.
Não é nem um pouco surpreendente que tenha sido justo a sociedade brasileira a primeira a criar uma lei proibicionista à maconha quando, em 1830, proibiu o “pito do pango”. Encarceirava e açoitava o negro e aplicava apenas multa ao branco que utilizasse a mesma planta.
Questiono: há real diferença no proceder atual ou apenas modernizamos os meios da opressão?
O sociólogo Orlando Patterson escreveu:
“Não há uma única sociedade escravista em que o chicote não tenha sido um instrumento indispensável.”
E ele continua sendo usado, agora denominado “forças de segurança”. A sociedade usa a polícia como o chicote que ainda brande e mantém abertas as chagas das desigualdades.
A chamada “Guerra às drogas” é na verdade, uma guerra aos pobres, aos pretos e periféricos. É uma guerra que ao contrário do senso comum é sim eficaz, pois nunca teve de fato o objetivo de combater a “droga” mas sim de manter arraigados na sociedade velhos e absurdos preconceitos, bem como uma lógica colonialista de segregação.
Sei que é difícil falar disso, talvez seja menos doloroso nos escondermos em migalhas ocasionais de inclusão e representatividade. Mas faz 500 anos que a sociedade brasileira relativiza a barbárie e segue repetindo esse comportamento cíclico e nefasto.
Com a ascensão recente do neofascimo está surgindo a versão moderna do pito do pango, a lei que está sendo discutida para regulamentar o uso medicinal da maconha.
O Dr. Erick Torquarto, no artigo “Pl399: O Apartheid Brasileiro”, faz uma análise lúcida e necessária:
“Hoje, no Brasil, é mais ou menos isso que estamos a presenciar: usuários de maconha, iguais no hábito, separados pela lei; proteção para um lado, criminalização violenta para o outro. Iguais, porém separados. E aí tem ocorrido o que é praxe: quando segregados se manifestam, ouvem como resposta daqueles que se dizem favoráveis à mesma luta “esperem, não estamos preparados!”
Pergunto: Serão necessários quantos ciclos de 500 anos para que a sociedade brasileira abandone os medos e subterfúgios, abandone a semântica segregadora e encare de frente os fardos das suas culpas e omissões históricas?
Na minha mente,não vejo sentido algum em discutir qualquer coisa relacionada ao assunto que não tenha em seu princípio a busca pela reparação histórica, que efetive o fim da guerra às drogas, que tire finalmente o chicote da mão do opressor.
Sinto diariamente um misto de alegria e tristeza quando faço uso do meu remédio, minha maconha que ameniza a minha dor, que controla os terríveis sintomas de uma doença neurodegenerativa, que me dá alívio e qualidade de vida.
Essa mesma maconha, por sua vez na mão do pobre, negro e periférico, vira motivo para extermínio e encarceiramento indiscriminado, sobretudo de jovens. O que deixa claro que a segregação ainda não acabou, ainda vivemos sob dois pesos e duas medidas.
Não consigo ficar indiferente. O me entender privilegiado já enseja a luta pelo fim do mesmo.
Estou farto da semântica segregadora e cansado de ouvir “Não estamos preparados”.
Chega! Precisamos falar daqueles de quem não falamos, precisamos falar de nós enquanto sociedade.